Porque hoje, dia 21 de março, em muitos países, entre os quais Portugal, se assinala o Dia Mundial da Floresta / Dia Mundial da Árvore, nós, na Biblioteca Escolar Madalena Sotto, queremos fazê-lo através de um excerto da obra do escritor oliveirense, José Maria Ferreira de Castro, "A Selva"
(...)
Amanhecia e a luz fosca que despertara Firmino branqueava
agora a selva nas alturas, baixando rapidamente através das ramagens e
iluminando as salas aéreas que por vezes se escortinavam entre a multidão
vegetal. A meio, porém, dos fustes anciãos, onde já chegavam os chapéus novos
dos infantes, essa grande claridade solar, marchando para a terra, encontrava a
oposição da ramaria que ali se fechava espessamente em mancha ainda negrusca.
Por toda a parte havia uma orquestra invisível, feita de
aves trinando melodias diferentes, que se diluíam frequentemente num ritmo tão
suave que era quase o silêncio verificado, na véspera, por Alberto, mas agora
mais vivo, mais alvoroçante e integrado no esplendor da manhã.
De quando em quando, como se alternassem, subia pelas
narinas, perturbando o olfacto, um cheiro forte de húmus em combustão, de
troncos e folhagem apodrecendo no solo negro e húmido; ou então errava, por
largos trechos, um aroma de ignorado jardim, perfume original e precioso como
nunca o recolheram os frascos caprichosos da França.
Adivinhava-se a luta desesperada de caules e ramos, ali onde
dificilmente se encontrava um palmo de chão que não alimentasse vida
triunfante. A selva dominava tudo. Não era o segundo reino, era o primeiro em
força e categoria, tudo abandonando a um plano secundário. E o homem, simples
transeunte no flanco do enigma, via-se obrigado a entregar o seu destino àquele
despotismo. O animal esfrangalhava-se no império vegetal e, por ter alguma voz
na solidão reinante, forçoso se lhe tornava vestir pele de fera. A árvore
solitária, que borda melancolicamente campos e regatos na Europa, perdia ali a
sua graça e romântica sugestão e, surgindo em brenha inquietante, impunha-se
como inimigo. Dir-se-ia que a selva
tinha, como os monstros fabulosos, mil
olhos ameaçadores, que espiam de todos os lados. Nada a assemelhava às últimas
florestas do velho mundo, onde o espírito busca enlevo e o corpo frescura;
assustava com o seu segredo, com o seu
mistério flutuante e as suas eternas sombras, que davam às pernas nervoso
anseio de fuga.
Vista uma légua
parecia ter-se visto tudo. Só a água, presa nos lagos ou deslizando nos rios e
igarapés, quebrava, com a abertura de clareiras, o emaranhado aparentemente
uniforme. E, contudo, havia ali uma variedade vegetal assombrosa, com milhentos
indivíduos diferentes a confundirem-se e a engalfinhar-se mutuamente, como numa
raiva surda, eviterna, mas quase com a mesma expressão. Daquela bárbara
grandiosidade e da sua estranha beleza
uma só forte impressão ficava: a inicial, que nunca mais se esquecia e nunca
mais também se voltava a sentir plenamente. Solo de constantes parturejamentos,
obstinado na ânsia de criar, a sua cabeleira, contemplada por fora, sugeria
vida liberta num mundo virgem, ainda não tocado pelos conceitos humanos: vista
por dentro, oprimia e fazia anelar a morte. Só a luz obrigava o monstro a mudar
de fisionomia, revelando as suas pesadas atitudes, mas persistindo sempre no
seu ar enigmático.
(...)
Título: A selva
Menção de Responsabilidade: Ferreira, Castro
Editor e Edição: 39ª ed
Publicação: Lisboa : Guimarães , 2000
Assunto: Literatura portuguesa -- romance , Literatura portuguesa , Romance
Menção de Responsabilidade: Ferreira, Castro
Editor e Edição: 39ª ed
Publicação: Lisboa : Guimarães , 2000
Assunto: Literatura portuguesa -- romance , Literatura portuguesa , Romance
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